22.1.09

OUTONO INVERNO E.M. 2007

Gabriela Demarco é quem cria e desenvolve não só os itens da última coleção Elvira Matilde, mas é quem, a cada nova produção, amplia e fortalece o espírito da marca. A campanha da Coleção Outono/Inverno EM 2007 é a quinta realizada toda com os clientes, amigos e parceiros. Desta vez as fotos do Livro de Coleção EM aconteceram num galpão todo aberto para a Mata do Jambreiro, uma reserva ecológica em Nova Lima, município vizinho à Belo Horizonte, que vem recebendo uma migração de “mineiros–cabeça” à procura, em suas montanhas, da paz e outras qualidades de vida que se tornaram essenciais neste início de século.

Gabriela sabe criar a cena. Pintou dois painéis panorâmicos que foram instalados sinalizando performaticamente o local dos acontecimentos. Ao longo do tempo ela trabalhou com alguns fotógrafos, e sempre por mais de uma vez, como uma parceria experimental e investigativa. Com o Feli Coelho existem qualidades únicas, pois foi ele quem fotografou os primeiros tempos de Gabriela no Brasil, quem fotografou a sua família nascente, suas meninas, seus amigos em ação, seus trabalhos iniciais, mas desde já, muito próprios: Urso Panda Gigante (BH, 1983), “onde o nome escrito inúmeras vezes em olivetti – numa fita fininha – alude de forma contrária ao tamanho do animal”. Manta Para Via Pública (BH, 1984), “tapete também gigante no alto da Afonso Pena, este mar ou rio feito de formulário contínuo, hoje em desuso, vira incrivelmente líquido com as ráfagas de vento. E depois, aquele resíduo de papel amassado é até comovente para quem estava lá. A Garota – carranca emblemática de pau de vassoura; apossado de um lote de jornal pintado, materiais perecíveis rasgam, são inadequados, quase impossíveis no espaço público”, nas suas próprias palavras.

Essas primeiras movimentações públicas de Gabriela Demarco no Brasil são expressões físicas/ambientais com grande envolvimento grupal: manufaturas transbordantes ao ar livre que exigiam grandes áreas e vários corpos para serem transportadas e instaladas. Os objetos de grandes proporções, realizados obsessivamente como respiração nos minutos dos dias e das noites, eram transportados por amigos e pelos amigos dos amigos para ambientes urbanos os mais diversos, como praças, parques, avenidas.

O registro das imagens/ações, que era feito em slides, fazia parte indissociável da proposta total e começava nesse momento porque, na verdade esse era todo o acontecimento: ver e fazer parte de uma ação com um bando de gente, onde você não sabe o que vai acontecer depois de arrumar tudo aquilo no lugar onde pediram pra colocar; suando com o esforço, seu corpo e o do outro tremendo com as gargalhadas que chegam com os movimentos inesperados que te acometem ao contato com aqueles objetos que não se deixam apreender completamente, nem pelo que são, nem como função.

O Feli circulava por dentro e pelas bordas de todo o movimento fixando momentos onde a luz, o objeto e o corpo estão em uma relação íntima, nova, e por tudo isso, bela. Bela porque polifônica, um cruzamento entre arte e experiência desde sua gênese até a sua apresentação, envolvendo performance, concepção cênica, literatura, recursos videográficos, desenho, e o design de indumentárias.

Vem dessa parceria o jeito de imagens em ação que mostra o Livro do Inverno EM 2007. Os painéis, como todos os objetos construídos por Gabriela, são amplificadores de sentido, eles deixam entrever os bastidores, criam a conversação entre o que vem antes e depois, revelando que tudo e todos são importantes.

Esta é a origem da marca Elvira Matilde. Desde sempre ela se propôs a vestir quem por ela se sentisse atraído: pessoas com os mais diversos corpos, habilidades, com os pensamentos mais distintos, mas que gostam da inventividade e da aventura da descoberta. Gente que sabe que vive num mundo muito competitivo e ama o que não tem pretensão, que acha o simples completamente instigante. Não reverencia nada que não seja existencial, orgânico, e tem muita verve para ser o que se é. São pessoas que vivem ou gostariam de viver misturando trabalho com afetividade, arte com vida, poesia com o cotidiano. Assim como a vida é uma e tudo está relacionado com tudo.

Esta coleção traz duas vertentes extremas da linguagem da estilista: por um lado o design essencial, sem ornamentos. São aquelas peças com modelagem básica e forte apelo visual/emocional, que se buscássemos sua família universal, poderíamos apontar os sapatos Crocs, o carro Twingo, a caneta Bic, a balinha MM, o prédio do MASP de Lina Bo Bardi... Traz os itens econômicos por sua silhueta e sua multifuncionalidade, como o tricot e a regata que podem ser vestidos de mais de uma forma, cada uma delas causando um shape diferente.

O oposto também está presente: o excesso e o ruído, talvez por causa da experimentação, uma linha mestra do trabalho de Gabriela em arte e no design de moda. São importantes aqui as sobreposições, a linguagem que vem da rua, a informação cultural dos anos 80, o excesso que marca o homem atual. Uma roupa com signos em saturação para esse homem urbano em estado de rush sem hora pra acontecer. Esta é uma lei da natureza: todo processo que atinge um ápice se transforma no seu oposto. Basta ter coragem para ver em si mesmo o caos, o excesso que trazemos em nós, ao invés de projetá-lo no outro. O universo Elvira Matilde é bastante autoral, e quem chega, muitas vezes tem que ser iniciado, numa iniciação até gradual. Culturalmente o “outro” é a maior referência, e não a gente mesmo, daí que pode levar tempo até aparecer a confiança que chega quando nos tornamos indivíduos. A confiança vem quando nos aceitamos com os nossos desejos e também os limites. Quando enfrentamos nossos fantasmas saímos livres, fortes e alegres.

Elvira Matilde é uma marca consciente da sua proposta de comportamento. Roupa é uma pele sensível sobre a pele biológica. Uma veste tecida de sentidos. Roupa para fechar? Ou roupa para abrir? O quê? A percepção? Integrar os vários corpos que temos ao sermos autênticos? Quem veio primeiro: o homem, a roupa, a moda? Para qual homem dirigimos nossa atenção? Em pleno século XXI não dá para falar de moda sem falar para qual homem estamos fazendo as roupas. É assim que hoje fazemos política, arte, ciência, moda. Não existem mais universos estanques e tudo é mesmo misturado, entrelaçado. Uma rede de relações, ao mesmo tempo em que se firma a cada estação o projeto da artista plástica e estilista Gabriela Demarco como uma poética dos corpos.
SP-Março 2007

Nenhum comentário:

Postar um comentário